quarta-feira, janeiro 21, 2009

Algumas propostas para a Justiça, por JORGE ALMEIDA ESTEVES, Juiz de Direito


Algumas propostas para a Justiça


12-Jan-2009
Análise da morosidade a nível do processo cível declarativo e do processo crime, com propostas de solução para os Juízos Cíveis, de Execução, Juízos de Execução e sobre o novo Mapa Judiciário.Por Dr. Jorge Almeida Esteves, Juiz de Direito

ALGUMAS PROPOSTAS PARA A JUSTIÇA
JORGE ALMEIDA ESTEVES, Juiz de Direito

A justiça, enquanto realidade complexa, pode ser vista sob um ponto de vista estático e sob um ponto de vista dinâmico. Os aspectos estáticos são os que se relacionam com a estruturação do sistema - selecção e formação dos magistrados, carreiras e estatutos, governo das magistraturas, garantias de independência e autonomia, logística e afectação de meios.
Os aspectos dinâmicos são aqueles directamente relacionados com o funcionamento do sistema enquanto prestador de um serviço, que, no entanto não é um serviço qualquer. Trata-se de um serviço que visa acautelar uma necessidade básica de qualquer comunidade humana e que é a resolução dos conflitos de interesses que surgem entre os membros da comunidade e a repressão da criminalidade.
Daí que para a prestação desse serviço seja absolutamente necessária a existência de um poder, diferente e distinto dos outros poderes do Estado [hoje em dia estamos a assistir a uma deturpação deste poder do Estado mediante a tentativa de o transformar em mais um prestador de serviços, como uma qualquer entidade administrativa (do que foi exemplo a colocação dos juízes na chamada "Lei dos Vínculos e Carreiras" da Administração Pública e a recente proposta de aplicação do sistema de avaliação da função pública aos oficiais de justiça), chegando até a ser visto, não como um fim em si mesmo considerado, mas antes numa perspectiva utilitária, colocado ao serviço de outros poderes e interesses].

Versando agora sobre os aspectos dinâmicos do sistema, não há dúvida de que existe em Portugal uma imagem de ineficácia da justiça, directamente relacionada com a morosidade.

Iremos unicamente analisar dois pontos desse problema (que me parecem ser os mais urgentes): a morosidade a nível declarativo em sentido lato, ou seja, até à prolação da sentença, seja ela cível ou criminal, e a morosidade a nível executivo, deixando ainda uma palavra final para a nova organização judiciária.

A morosidade a nível declarativo existe em determinadas comarcas do país e que já há muito estão identificadas (são os chamados "cancros do sistema" ou "galeria dos horrores", como também foi apelidada a situação): tratam-se essencialmente das comarcas da área metropolitana de Lisboa (mas não da comarca de Lisboa, que não tem problemas de morosidade a nível declarativo).
São comarcas como Sintra (talvez o pior tribunal do país a esse nível), Oeiras, Setúbal, Loures, Vila Franca de Xira, Seixal, Cascais. Curiosamente, mesmo nestas comarcas, não se pode dizer que o Tribunal esteja a funcionar mal em todos os aspectos.
Por exemplo, em Sintra, as Varas Mistas e os Juízos Criminais estão com enormes atrasos (os processos duram em média cerca de 4-5 anos até à sentença), mas os Juízos Cíveis funcionam razoavelmente bem.
Em Oeiras, os Juízos Cíveis também funcionam bem, ao passo que os Juízos Criminais estão um caos (com uma pendência média de 5.000; os juízos cíveis têm uma pendência média de 900/1000 processos).

Pode-se afirmar que, em regra, os grandes problemas de morosidade estão nas Varas de Competência Mista, nos Juízos Criminais e nos Juízos Cíveis que ainda mantêm competência para tramitar as execuções (caso de Cascais).

Quanto às Varas Mistas os atrasos verificam-se essencialmente nos processos de natureza cível. A explicação para esses atrasos, para além do défice do número de funcionários, está fundamentalmente no facto de se dar prioridade aos processos crime, sendo esses os processos que efectivamente são tramitados.
Na realidade, as Varas Mistas funcionam como Varas Criminais, uma vez que o dia-a-dia está sempre ocupado com as diligências e a tramitação dos processos crime, muitos deles de grande complexidade e de natureza urgente por terem arguidos presos, e, depois, com a tramitação dos processos urgentes de natureza cível, impedindo que seja desenvolvido trabalho específico no sentido de tramitar os processos cíveis e recuperar os atrasos verificados.
Resultado desta situação: há processos cíveis (e note-se que as Varas julgam os processos de maior valor) que se arrastam há mais de 10 anos, estando alguns parados, sem qualquer tramitação, há 1, 2, 3 ou até mais anos.

Quanto aos Juízos Criminais, a morosidade tem a sua causa nos seguintes factores:

- alterações legislativas no sentido de privilegiar o julgamento pelo juiz singular, o que tem vindo a fazer aumentar as pendências nos Juízos Criminais e a diminuir os processos da competência do Tribunal Colectivo, sem medidas no sentido de aumentar o número de Juízos Criminais;

- uma competência muito vasta, que abrange as contra-ordenações e os processos de condução sem carta e sob o efeito do álcool (em Lisboa e no Porto, os Juízos Criminais funcionam bem exactamente porque não tramitam este género de processos, que são da competência da Pequena Instância Criminal);

- uma endémica falta de salas de audiência que não permite ao juiz marcar o número de julgamentos que seria possível realizar.

Quanto aos Juízos Cíveis, a morosidade só existe naqueles que ainda tramitam os processos executivos e exactamente por causa disso. Os processos executivos têm tendência a eternizar-se, dando muito trabalho ao juiz, impedindo-o de se dedicar convenientemente aos processos de natureza declarativa. Por exemplo, em Oeiras, onde os Juízos Cíveis não tramitam as execuções porque foi criado o Juízo de Execução (que tem pendentes cerca de 24.000 processos), o julgamento dos processos cíveis é marcado a cerca de 2 meses para permitir a notificação das testemunhas com uma antecedência razoável.

Possíveis soluções para estes problemas

Como vemos, os problemas estão perfeitamente identificados e sua mera enunciação abre caminho para as soluções.
Os problemas dos Juízos Cíveis são resolvidos (como se constata pelo caso de Oeiras) com a criação de Juízos de Execução (em que moldes a execução deverá funcionar é algo que abordarei a seguir).
Quanto aos Juízos Criminais é essencial a criação de Tribunais de Pequena Instância Criminal nas comarcas da área metropolitana de Lisboa e, eventualmente, o aumento do número de Juízos Criminais.
Note-se que os Juízos Criminais são muito importantes para as comunidades, pois tratam daquela criminalidade média, em que geralmente existe um queixoso, e que, se funciona mal, dá uma imagem de impunidade, que conduz, por um lado, a actos de justiça privada por parte dos ofendidos que ficam desiludidos e frustrados com a má actuação da justiça pública, e, por outro lado, à prática de crimes mais graves, o que decorre da ideia que os arguidos começam a formar de que se o sistema não tem capacidade para punir atempadamente a criminalidade média, também não o terá para a criminalidade mais grave.
Por isso é muito importante manter, no que aos Juízos Criminais concerne, a justiça de proximidade e criar estruturas para que essa justiça seja célere e eficaz.

Quanto às Varas Mistas, que julgam os processos mais graves (cujas penas são, em abstracto, superiores a 5 anos de prisão), creio que se pode concluir que, se para a pequena criminalidade se justifica uma justiça de proximidade, a grande criminalidade exige acima de tudo tribunais especializados, com boas condições de segurança, em que a proximidade já não é tão relevante, atendendo até a que muita dessa criminalidade se dissemina por vários concelhos, discutindo-se num determinado tribunal factos que sucederam noutras comarcas.
Deste modo, considero que a solução passa pela criação de uma Grande Instância Criminal para a área metropolitana de Lisboa, cuja competência abrangeria as comarcas de Lisboa, Oeiras, Cascais, Sintra, Amadora, Loures, Vila Franca de Xira Almada, Seixal, Barreiro, Montijo, Moita, Sesimbra, Palmela e Setúbal, localizada num local estratégico em termos de vias de acesso e de segurança.
Uma solução deste tipo resolveria, por si só, todos os problemas da morosidade dos processos cíveis (as Varas Mistas seriam transformadas em Varas Cíveis, podendo então dedicar-se em exclusivo aos processos cíveis), para além de ajudar a resolver a morosidade dos Juízos Criminais que tramitam os processos da competência do tribunal colectivo (casos de Oeiras, Cascais, Vila Franca de Xira, Almada, Seixal).
Esta solução permitiria também uma especialização na criminalidade mais grave e fundamentalmente na criminalidade económica, que é, hoje em dia, aquela onde essa especialização é mais necessária, quer a nível de magistrados, quer a nível de funcionários (para além de resolver os problemas derivados dos conflitos de competência que surgem entre as comarcas indicadas e que não são, de todo, despiciendos, pois provocam inúmeros atrasos na tramitação dos processos).

Temos agora a questão da morosidade da acção executiva.

A questão tem de ser colocada a dois níveis. Por um lado, temos o nível das medidas de emergência para resolver a caótica situação actual (há seguramente cerca de 500.000 acções executivas paradas no país inteiro nas mãos dos solicitadores de execução).
E por outro lado, temos que pensar num modelo de acção executiva adequado às especificidades do nosso país.
Creio que este é o problema mais sério da justiça a nível nacional e que decorre de um conjunto de factores muito complexo, que abrange questões de mentalidade (somos o país da Europa Ocidental com o maior número de acções executivas intentadas e com o maior índice de incumprimento das obrigações), falta de meios materiais e humanos, normas processuais complexas que privilegiam o formalismo, adopção de sistemas de execução pouco adequados à realidade, laxismo dos intervenientes processuais.
Mas uma questão é "Que sistema?" e outra é "Como resolver a situação actual?".
Neste momento o mais importante é sem dúvida tentar responder à segunda questão (o Governo, com a Reforma do Mapa Judiciário e as alterações à Acção Executiva parece mais interessado em arranjar respostas para a primeira questão, sem se preocupar minimamente com a segunda, que é muito mais importante, sendo que a resposta à primeira questão não permite responder à segunda porque a situação é de tal forma anómala e gravíssima que terá de passar pela adopção de medidas de emergência).

A solução passa, a meu ver, pelo seguinte:
Determinação das acções executivas que se encontram nas seguintes situações:

a) A aguardar a citação dos executados;
b) A aguardar a realização de diligências de busca de bens penhoráveis;
c) A aguardar o pagamento em prestações da quantia exequenda, nos termos do artº 882º do Código de Processo Civil;
d) A efectuar descontos decorrentes de penhoras sobre rendas, abonos, vencimentos, salários ou outros rendimentos periódicos;
e) A aguardar o cumprimento de quaisquer diligências já ordenadas ou em curso mas ainda não cumpridas integralmente;
f) A aguardar a venda dos bens penhorados;
g) Com penhoras concluídas há menos de um ano à data da entrada em vigor deste diploma, ou, tendo sido concluídas há mais de um ano, o prosseguimento subsequente não dependa do impulso processual do exequente;
h) A aguardar a decisão final de algum incidente, acção apensa ou acção declarativa de carácter prejudicial;
i) A prosseguir por iniciativa do Ministério Público para cobrança das custas em dívida, desde que o prosseguimento tenha sido ordenado há menos de um ano à data da entrada em vigor deste diploma, ou, se tiver sido ordenado há mais de um ano, existam bens penhorados;
Este apuramento visa essencialmente determinar quais as acções que, reconhecidamente, têm viabilidade. Depois há que determinar, quanto às restantes execuções, as razões pelas quais as mesmas se encontram paradas, devendo ser dado imediato andamento àquelas em que nenhuma diligência foi praticada.
As execuções em que foi tentada a penhora de bens e nada foi encontrado devem ser imediatamente extintas, por manifesta inutilidade, permitindo-se, no entanto, que o exequente possa intentar uma nova caso venha a ter conhecimento que o executado voltou a obter bens penhoráveis.
Do conhecimento que tenho da realidade (inclusive daquela que me tem sido transmitida pelos inspectores do Conselho dos Oficiais de Justiça, estas medidas permitirão extinguir, cerca de 50% das acções executivas pendentes).
Este apuramento será certamente bastante trabalhoso e terá que ser efectuado, em conjunto, pelos Tribunais e Câmara dos Solicitadores.
As acções executivas que não forem extintas desta forma, serão redistribuídas pelos solicitadores de execução, de modo a conseguir uma distribuição igualitária (há solicitadores de execução com claro excesso de acções executivas), permitindo-se ainda, quanto às pessoas singulares, que as mesmas requeiram que a execução passe a ser tramitada no tribunal, passando o agente de execução a ser um oficial de justiça (aliviando deste modo os solicitadores de execução).
Temos assim, dois passos essenciais:
- expurgação do que reconhecidamente e nas actuais circunstâncias, não tem viabilidade;
- redistribuição das restantes acções, não só entre os solicitadores de execução, mas também entre estes e os oficiais de justiça, aumentando-se deste modo o número de agentes de execução.
Depois de resolvida a situação caótica actual, podemos dedicar-nos à tarefa de determinar qual o melhor sistema de acção executiva para a nossa realidade. Tal exigirá uma reflexão profunda e um debate alargado entre juízes, magistrados do Ministério Público, advogados, professores universitários, funcionários judiciais, solicitadores de execução, associações empresariais, associações de defesa do consumidor, debate esse que necessariamente se impõe e não foi, de todo, feito no âmbito da recente reforma da Acção Executiva.

Uma última palavra para o novo Mapa Judiciário. Se se visa com ele resolver os actuais problemas da justiça, trata-se sem dúvida do resultado de um erro crasso de diagnóstico.
Nunca, em tempo algum, se ouviu dizer por parte dos profissionais do foro que os problemas da justiça, nomeadamente no que se refere à morosidade, radicavam na actual organização judiciária.
Ouviam-se sim críticas quanto à utilidade da existência de algumas comarcas, que talvez não se justificassem atendendo ao número de processos pendentes.
No entanto, sempre existiu um consenso quanto à actual organização judiciária e ao modelo territorial da comarca, tendo sido recebida com surpresa pelos profissionais do foro o anúncio de um novo mapa judiciário.

Todos eles olham com muitas reservas para esse mapa e acham que vai trazer novos problemas, criar problemas onde eles não existiam, para além de não resolver nenhum dos existentes.
Os problemas existentes estão localizados e identificados, podendo ser resolvidos mediante medidas cirúrgicas que permitam atalhar à grave situação que se vive em algumas comarca e criar condições para um melhor funcionamento no futuro.
O novo Mapa Judiciário é uma obra sumptuária, que representa um corte profundo na evolução histórica da nossa organização judiciária e não vem trazer qualquer tipo de solução para os problemas actuais que não pudesse ser feita com o actual quadro organizativo da comarca e do círculo, nomeadamente no que respeita aos tribunais especializados da jurisdição de Família e Menores e do Comércio, pois seria perfeitamente possível abranger todas as comarcas do país pela competência desses tribunais, criando-os nas sedes dos círculos judiciais, podendo até abranger mais do que um círculo judicial (caso dos Tribunais do Comércio), sem destruir a actual orgânica e sem atingir o valor fundamental da justiça de proximidade, que é muito importante para a justiça cível e para a pequena e média criminalidade.

JORGE ALMEIDA ESTEVES 12.01.2009


http://www.justicaindependente.net/opiniaoforum/jorgeesteves-propostas-justica.html

Sem comentários:

Enviar um comentário