segunda-feira, julho 10, 2006

Entrevista - Cândida Almeida


Cândida Almeida, directora do departamento central de investigação e acção Penal (DCIAP), desafia o poder político a avançar com um Plano Estratégico de Combate à Corrupção com metas, investigação e tribunais especializados, e sobretudo melhores leis dando às testemunhas níveis de protecção e reserva de identidade como já acontece nos casos de terrorismo, tráfico de seres humanos e crime organizado.

Correio da Manhã – Por que diz que os casos de corrupção em Portugal não são tão numerosos como se escreve nos jornais?
Cândida Almeida – O que se passa é que Portugal não só está a meio entre os 25 países da União Europeia nos índices da Transparency International, onde é 26.º menos corrupto entre 158 países de todo o Mundo, como, sobretudo, o número de casos de corrupção denunciados por ano corresponde de facto à média entre os países da UE.
– Quais são os números actuais?
– No momento, estão pendentes em todo o País 360 processos sobre suspeitas de corrupção. No ano passado, no DCICCEF da Polícia Judiciária, o inspector Maurício fez um levantamento de 2001 a 2005 em que somou 1251 casos, o que dá uma média de 312 por ano. Antes, aqui no DCIAP, fizemos um estudo sobre as incidências em 1999-2001, apurando quem se queixava, quem eram os suspeitos, onde trabalhavam, qual o seu nível de formação para definir os perfis do corrupto e do corruptor e as conclusões apontaram para números inferiores aos actuais, o que é normal porque falar da corrupção desperta sempre a denúncia de mais casos.
– Existe alguma incidência que aponte os autarcas como mais suspeitos de corrupção?
– Não, não há, porque ainda não fizemos qualquer estudo sobre essa incidência. Mas é importante dizer que essa é uma ideia tirada apressadamente do estudo do inspector Maurício. Ele concluiu que existia uma maioria de casos envolvendo as autarquias, mas não apurou se estavam em causa os autarcas eleitos ou os funcionários. Identificar onde há maior incidência de casos de corrupção exige tempo e pessoas disponíveis para estudarem os processos. Estou interessada em que se faça esse levantamento.
– Por que é que critica que se fale muito em corrupção?
– Por que se faz muita confusão. Esta semana referi em duas comunicações um artigo do prof. Boaventura Sousa Santos, em que, independentemente do apreço intelectual que me merece, tenho de criticar a forma como evoca “uma maré negra de corrupção”, misturando menores e actos ilícitos na administração e na economia, confundindo corrupção jurídica, com a social, sociológica. Acho que é uma temeridade afirmar, sem ter números, que o País é corrupto, porque isso fragiliza o nosso papel no concerto das nações e a nossa democracia. Eu não digo que não há corrupção, digo é que é preciso averiguar e saber o que realmente existe. Conhecer qual é o tipo de corrupção, se é a pequena, a média ou a alta, torna-se essencial para a combater e preveni-la na origem.
– Mas a confusão na cabeça dos cidadãos não resulta da falta de clareza legislativa?
– Do meu ponto de vista, a legislação é clara e os cidadãos é que confundem as coisas quando começam a falar. O defeito da legislação é outro. O problema é que as normas tal como existem tornam difícil a prossecução de numerosos processos. Antes de 2001, segundo a lei, nem sequer havia corrupção quando não existia uma contrapartida, ou pelo menos ele se projectava no futuro. A partir da Lei 108/2001 já se pune a oferta e recebimento de prendas, dinheiros ou outras vantagens materiais, mas a punição para este tipo de casos, que eu acho graves porque aviltam a transparência da Administração Pública num país democrático, está limitada a dois anos de prisão e parece-me ridícula. Basta pensar em alguém que receba mensalmente uma oferta, dinheiro ou cheque, num comportamento sujo e que vai contra as regras da transparência, não arrisca mais do que dois anos de cadeia e o crime até prescreve ao cabo de cinco anos. Isto não se passa em países onde o combate à corrupção está mais avançado e este tipo de crimes é imprescritível.
– Pensa que Portugal devia seguir esse caminho?
– Não, porque considero importante a existência da prescrição, mas defendo o alargamento dos prazos e o aumento do limite das penas para que se possam adequar aos casos concretos. A medida da pena devia ser a mesma que existe para os actos ilícitos, que é até oito anos de prisão e prescrição só ao fim de dez. O equiparar das penas seria essencial para se ultrapassarem as dificuldades que existem para provar a existência de uma contrapartida. Temos de reconhecer que a corrupção é sofisticada e muitas vezes nem sequer conseguimos encontrá-la. Se há uma prova de que alguém deu e alguém recebeu, não se devia ter de, além disso, provar a contrapartida. Aliás, a alta corrupção procede desta forma. Em Itália, as máfias oferecem grandes vantagens patrimoniais por alturas do Natal e Ano Novo com vista a obter contrapartidas mais tarde. E, nos EUA, as listas que o Al Capone tinha de avenças a juízes e polícias também visavam actos ilícitos no futuro. Qualquer destes crimes nunca dava, em Portugal, mais do que dois anos de prisão. Isto não pode acontecer.
– Qual é mesmo o problema que mais dificulta a investigação?
– A falta de protecção das testemunhas dos casos de corrupção. As medidas mais fortes, como a reserva de conhecimento e de identidade que existe nos processos de crimes de terrorismo, tráfico de seres humanos e associação criminosa não são aplicadas no combate à corrupção. E isto quando as pessoas têm tanto medo de represálias que nem sequer assumem as denúncias que fazem. Na maioria dos casos, a denúncia é anónima e o que chega é muito vago e às vezes até com aldrabices. Mas, mesmo quando acusam pessoalmente, não assinam a denúncia e não querem constar do processo com o receio de mais tarde serem confrontados por quem acusam, até porque há a ideia de que eles acabam por ser sempre absolvidos, e quem sai prejudicado é autor da denúncia.
– Também há exigência da lei que obriga a investigação a separar o património obtido de forma lícita e de forma ilícita?
– É o artigo 7.º da Lei 5/2002 que obriga a investigação, já com grandes dificuldades em descobrir o património dos suspeitos de corrupção, muitas vezes repartido e escondido por nomes de diversos familiares, a apurar ainda o que resulta de actividades lícitas e o foi ganho ilícito. Esta lei devia ser modificada, passando para o réu o ónus da prova. Ela impede de facto como constata o Relatório Greco que em Portugal se faça o confisco dos bens ilícitos a favor do Estado. Não é aceitável que se obrigue a investigação a saber se, além do proveito da corrupção ou do tráfico de droga, o suspeito também tem uma mulher poupada ou se lhe saiu a sorte grande.
– É por isto que se pensa que a corrupção escapa à lei...
– Sim, já tenho constatado essa ideia, mas não tenho dúvidas de que quando há provas os réus são obviamente condenados, embora nalguns casos a penas menos graves do que mereciam. A ideia de impunidade não corresponde à verdade e temos de apagá-la da Comunicação Social e da cabeça das pessoas com uma cultura de cidadania que nos faça exigentes e leve a denunciar o que está mal. Sem esse contributo, é impossível combater a corrupção.
– E o que é que a Justiça deve fazer para se tornar mais eficaz?
– Uma medida importante é que os magistrados que trabalham no crime económico ou financeiro devem ter uma formação específica. É preciso que os processos de corrupção sejam investigados, instruídos e julgados por departamentos do Ministério Público e tribunais com pessoas bem preparadas, com qualidade e antiguidade.Há, por outro lado, falta de meios e de recursos humanos que eventualmente podem estar mal distribuídos. Sinto muita falta de peritos. Nos crimes de corrupção fazemos muita análise e cruzamento de informação e o Ministério Público fica limitado se não puder determinar e fazer-se obedecer pelos serviços públicos especializados quanto à prioridade de perícias necessária para uma investigação em relação ao trabalho rotineiro desses organismos. Os meios são muito reduzidos. O Núcleo de Apoio Técnico, no DCIAP e a funcionar para todo o País, com especialistas preparados para o crime económico e financeiro, só tem oito pessoas.
– Estes meios não são iguais aos dos outros países europeus?
– De modo nenhum. Na Bélgica, que tem uma população igual à nossa, o departamento de coordenação similar ao português, que começou mais tarde e com menos meios, conta hoje com cerca de 70/80 funcionários e 40 a 50 magistrados, enquanto em Portugal temos dez magistrados, sete funcionários e dez órgãos de polícia criminal.
– É por falta de meios que os processos mediáticos morrem?
– Não, o que devia acontecer é conseguirmos resultados mais rapidamente. Assim temos de nos desdobrar, mas não há processos arquivados por abandono ou prescrição.
– Mas é o que se pensa quando se deixa de falar nas investigações às câmaras da Amadora e Cascais ou na ‘Operação Furacão’, que era o maior processo contra o branqueamento de capitais feito em Portugal?
– Não há nenhum inêxito nos processos. A chamada ‘Operação Furacão’ está em investigação.
- Mas o prolongar das investigações é inaceitável quando se vê o ‘Apito Dourado’ correr há mais de dois anos, enquanto em Itália um processo de corrupção no futebol noticiado há meses já está em julgamento?
– Era preciso saber quanto tempo houve antes de investigação sem ninguém saber. Uma questão que se coloca em Portugal é que as investigações são notícia desde o seu início. Nos outros países não há maior rapidez. A média de duração de elaboração dos processos é a mesma, seja em Itália ou em França. '
PGR DEVIA SAIR DO MINISTÉRIO PÚBLICO'CM
– Qual o perfil que traça para o futuro procurador-geral da República?
C.A. – Como magistrada do Ministério Público, considero que seria importante que saísse do próprio MP para conhecer a máquina e conseguir com essa vantagem apresentar mais rapidamente soluções mais eficazes. Ser do MP não me parece, porém, imprescindível. O que não aceito é que se exclua essa possibilidade. Ele pode também conhecer a máquina vendo-a de fora.Essencial é que seja imparcial, sério, equidistante, tenha capacidade de trabalho para pôr a máquina a funcionar e seja respeitado. Não podem é escolher alguém para depois o atacar. Não lhe podem tirar o tapete debaixo dos pés. Não pode ser destruído na praça pública, atacado por factos que não são da sua responsabilidade. Defendo o Ministério Público com uma estrutura hierarquizada e responsabilizada. O procurador-geral da República, no topo, não pode ser crucificado por tudo. Os cidadãos e a Comunicação Social devem respeitá-lo, porque é uma pessoa com importância essencial no Estado de Direito Democrático.
PERFIL
Directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) desde Fevereiro de 2001, Maria Cândida Almeida, nascida no Porto a 28 de Janeiro de 1949, foi a primeira mulher a entrar para o Ministério Público, após a Constituição de 1976 o consagrar com independência e estatuto inovador, já que deixou de ser mera carreira vestibular da magistratura judicial. Em Junho de 1976, teve a sua primeira colocação em Cascais, conseguindo o que antes do 25 de Abril lhe fora recusado por a lei o não permitir.
O facto de ser mulher fechou-lhe outros acessos no tempo da ditadura do Estado Novo. No entanto, foi sempre uma valente fazendo quase todo o curso de Direito em Coimbra, como ‘aluna voluntária’ a trabalhar a milhares de quilómetros, em Porto Amélia, no Norte de Moçambique.
Licenciou-se em 1972, casou, teve a sua única filha e como procuradora encarregou-se de casos célebres como as FP-25, o caso Dopa e Dona Branca. Casou segunda vez com Maximiano Rodrigues e é actual presidente da assembleia geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.

por: João Vaz

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