Garcia Leandro, Uma implosão partidária é uma questão de tempo
Garcia Leandro, general e director do observatório de segurança, não tem dúvidas de que a situação social em Portugal é potencialmente perigosa. Diz que se os partidos nada fizerem pode acontecer uma explosão ou uma implosão social. Afirma que é urgente uma reforma do sistema e que as actuais forças políticas vão implodir mais cedo ou mais tarde, dando origem a novos partidos, bem definidos à esquerda e à direita. E está com Cavaco no ataque aos altos salários dos gestores.
Correio da Manhã – Há razões em Portugal para as pessoas se sentirem muito indignadas com o que se passa em termos económicos e sociais?
Garcia Leandro, general e director do observatório de segurança, não tem dúvidas de que a situação social em Portugal é potencialmente perigosa. Diz que se os partidos nada fizerem pode acontecer uma explosão ou uma implosão social. Afirma que é urgente uma reforma do sistema e que as actuais forças políticas vão implodir mais cedo ou mais tarde, dando origem a novos partidos, bem definidos à esquerda e à direita. E está com Cavaco no ataque aos altos salários dos gestores.
Correio da Manhã – Há razões em Portugal para as pessoas se sentirem muito indignadas com o que se passa em termos económicos e sociais?
Garcia Leandro – Há e eu tenho verificado isso a vários níveis. As pessoas estão muito indignadas. Principalmente porque, reconhecendo que há uma grande necessidade de se fazerem reformas neste País, grandes reformas que este Governo está a fazer, muitas ao mesmo tempo, com muitas dificuldades, muitas reacções e eventualmente com erros, os sacrifícios só serão compreendidos desde que sejam feitos para toda a gente, da mesma maneira
- E não se está a passar isso em Portugal?
- Não se passa. Há um grupo, uma elite dominante que controla a componente político-partidária e económica que vive noutro País e com rendimentos, benefícios e mordomias que não têm nada a ver com a grande maioria da população.
- A diferença entre ricos e pobres tem estado a aumentar. Esta situação pode provocar movimentos sociais complicados para a democracia portuguesa?
- Pode dar origem a movimentos. Eu escrevi explosão social, mas pode dar origem também a um desinteresse, a um desacreditar e a uma tentativa de enganar o Estado de qualquer maneira. Mas em vez da tal explosão social, o que pode acontecer é uma implosão social. É toda a estrutura social que se vai abaixo por falta de credibilidade e por as pessoas não acreditarem em quem nos chefia
- Há um afastamento das pessoas em relação às instituições e à política. Mas não concorda que se sente hoje em dia um sentimento de depressão?
- Há partidos que têm a sua área muito definida e muito delimitada. O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista são dois partidos com essa situação. Agora os outros fazem parte do arco governamental. Essencialmente o PS e o PSD, às vezes o CDS. E o exemplo tinha de vir daí. E as pessoas não vêem bons exemplos dessas áreas políticas. Vêem maus exemplos. E isso leva a essa grande decepção e depressão. E depois aparecem determinados casos, como o do BCP.
- É um dos maus exemplos?
- O caso BCP, para além da parte empresarial, foi uma grande decepção, inclusivamente para mim. Conheço o engenheiro Jardim Gonçalves, era uma referência em termos de liderança, em termos de ética, em termos de organização, em termos de sucesso empresarial e baseado nos valores cristãos, até ligado à Opus Dei. E o doutor Paulo Teixeira Pinto também, como se sabe. Quando o véu se levanta e se conhece esta história toda, todos nós nos sentimos enganados.
- Mesmo quem não era accionista ou cliente do BCP?
- Isto vai para além do BCP e do problema financeiro do banco. Houve um padre que me disse que se tinha sentido atraiçoado. Como é que estes homens podem dizer que são cristãos? Não são cristãos.
- Mas nesse arco governamental que referiu, essencialmente o PS e o PSD, o Bloco Central, nada se move, nada muda. Não acha que seria necessária uma implosão partidária?
- Eu penso que é uma questão de tempo. Julgo que isso tem de se fazer. Aliás, há muita gente ligada aos partidos que pensa que isso vai ter de acontecer. Enquanto nós temos de modo bem definido e delimitado as áreas do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista, julgo que o PS é muito grande e que dentro dele há mais do que um partido. Há um partido claramente socialista e republicano em que estarão os doutores Manuel Alegre e João Soares. Depois há uma área maior que é o partido social-democrata.
- Na qual está o primeiro-ministro?
- O engenheiro Sócrates é claramente de uma área social-democrata. Está a fazer as reformas que são necessárias pelo enquadramento internacional e para que Portugal se possa reafirmar no quadro da União Europeia. É muita coisa ao mesmo, com a violência mundial e com a situação financeira completamente desregulada. Mas essa parte mais à direita do PS com a parte mais à esquerda do PSD é que seria o partido social-democrata. E a parte mais à direita do PSD, com o doutor Santana Lopes e outras pessoas conhecidas, com o CDS era claramente o partido liberal. Eu diria que ideologicamente estariam certos. Mas não sei se conseguem fazer isso, se conseguem mexer no quadro partidário.
- Em Itália a implosão política aconteceu por força da revolta dos juízes contra a corrupção. Aqui também se fala muito em corrupção. Há muita corrupção?
- Muita corrupção. A corrupção está aí. Ouvi recentemente o engenheiro João Cravinho falar disso. Ele próprio, quando estava no Parlamento, propôs uma lei anti-corrupção que o próprio PS não aceitou. E, por outro lado, a nossa estrutura é muito frágil. Não só a nível empresarial, profissional, mas também a nível dos tribunais. Uma democracia para funcionar tem de ter os tribunais a funcionar. E em Itália, independentemente do sistema político-partidário, há uma economia forte, com empresas fortes e com uma justiça muito independente, muito forte e com muita coragem. Há uma diferença muito grande. A Itália pode funcionar sem Governo.
- E Portugal não?
- Em Portugal não.
- Pára tudo. Até a justiça?
- A justiça é uma das áreas em que as reformas têm de ser feitas.
- Mas aí andam muito devagar, não concorda?
- É verdade. Mas são áreas em que os responsáveis mais altos do Estado, o senhor Presidente da República e o senhor primeiro-ministro, têm vindo a demonstrar uma necessidade de urgência. Quer na área da justiça social, quer na área da reforma dos tribunais, da rapidez dos tribunais. Esta chamada que o senhor Presidente da República fez para o leque salarial foi muito importante. São coisas urgentes. E há um grande problema muito difícil de resolver por qualquer Governo. Face à nova situação internacional e à necessidade que Portugal tem de se afirmar, de precisar de empresas fortes e de grandes reformas, os responsáveis políticos não conseguem explicar essas reformas à população.
- É muito difícil. Mas será impossível?
- Se o primeiro-ministro conseguisse fazer baixar alguns salários e algumas mordomias de grandes gestores públicos ganhava uma grande popularidade e era uma marca de que estava não só na linha das afirmações do senhor Presidente da República como na linha da moral. Podem dizer-nos que é tudo legal. Mas é imoral e além de ser imoral está desadequado ao nosso País.
- Alguns ordenados e mordomias de gestores são verdadeiros escândalos.
- E nas autarquias também. E nas empresas municipais.
- É um choque para as pessoas.
- É. Com as remunerações, as acumulações, algumas reformas.
- Mas porque é que os partidos não conseguem tocar nessas matérias?
- O engenheiro Cravinho disse há dias que os partidos têm vindo a reboque da opinião pública. É a doutora Maria José Morgado, o Presidente da República, o engenheiro Cravinho e outras pessoas que têm vindo a chamar a atenção para esses problemas. E dentro dos partidos políticos há uma luta clara entre as pessoas, que são uma minoria, que querem fazer as reformas e os outros que não as querem fazer. Por exemplo o doutor António José Seguro no PS. É um homem novo, com um grande sentido de Estado, por quem eu tenho uma grande consideração, que quer fazer essas reformas no sistema política. Mas homens como ele não são a maioria do partido.
- A grande corrupção é a do Estado com os privados?
- Estão sempre ligados. É uma ligação um bocadinho envenenada. Repare, como é que é possível aparecerem agora tantos hospitais privados. Onde é que há médicos, onde é que há doentes para tantos hospitais privados.
- Numa altura em que o Serviço Nacional de Saúde é objecto de grandes polémicas.
- Exacto. Vão abrir seis hospitais privados no Porto. Como é que é possível? São negócios que estão claramente feitos e há uma relação público-privada nisto.
- No artigo que escreveu recentemente dizia que já não é o tempo de revoltas de generais...
- E de cardeais. Digo-lhe isso porque na nossa história foram sempre generais ou cardeais que resolveram os problemas.
- Se não são uns ou outros, quem é que pode resolver agora os problemas?
- Tem de ser o sistema. Quando eu digo que tem de ser o sistema político-partidário, os cidadãos, digamos assim, há pessoas que me dizem que sou ingénuo, que sou inconsequente, porque o sistema político-partidário não se vai reformar.
- Por si próprio?
- Por si próprio. Eu julgo que se houver mais pressão da opinião pública e mais movimentos de cidadãos acaba por ter de se reformar. E tem de ser dentro do quadro das instituições que as reformas se fazem. Não vejo outra maneira. Tem de ser dentro do Estado de direito. Eu sou profundamente institucional. Tudo isto deve ser feito pelos responsáveis políticos.
- Sem convulsões?
- Sem convulsões se tomarem a iniciativa.
- E não houver essa iniciativa?
- Se quer que lhe diga não sei o que vai acontecer. Pode haver a tal explosão social, pode haver uma implosão social e podem correr-se riscos mais graves. Que é Portugal, a dada altura, perder importância. Uma das questões que toda a gente reconhece é que o País devia ter feito reformas há mais tempo. Não as fez e hoje aparecem indicadores, tanto a nível mundial como a nível da União Europeia, que mostram que estamos a perder lugares. O que acontece com este Governo, e essa é a dificuldade muito grande do primeiro-ministro, é ter de fazer muita coisa ao mesmo tempo a um grande ritmo.
- É preciso acelerar.
- Acelerar muito. E depois não tem um tecido social e um tecido empresarial que lhe responda.
- O tecido empresarial vive à sombra do Estado.
- E mais. A formação académica é fraca. A formação escolar dos autarcas é relativamente fraca. Quando se fala na descentralização, delegar funções e competências as coisas não andam. Veja as reformas do ministro da Saúde. O doutor Correia de Campos era um homem competente, considerado um bom técnico na área da economia da Saúde, mas também ele quis fazer muita coisa ao mesmo tempo. Mas quando se tomam decisões de encerrar isto ou aquilo no sítio A ou B temos de ter alternativas. Ora isso não foi montado. É um processo complicado.
- Acredita que surjam movimentos de cidadãos para pressionar os partidos e o sistema?
- Há novos partidos que estão a tentar organizar-se. Eu já fui contactado por dois. Além de vir a existir o eventual novo partido do doutor Manuel Alegre.
- As experiências de novos partidos falharam sempre. Como o PRD, por exemplo. Agora será diferente?
- Julgo que este exame de consciência, que este meu grito de alerta ou de alma é uma coisa que a maior parte dos responsáveis políticos já percebeu. E os mais responsáveis sabem que se não tomarem medidas reformistas esta situação vai agravar-se cada vez mais. E eles vão perdendo cada vez mais credibilidade. A minha esperança é que surjam esses movimentos e que o sistema tenha capacidade de se autoreformar. Porque só isso evita esses tais movimentos de explosão social.
- Mas basta isso? Se a economia não crescer a reforma do sistema político é suficiente para evitar essa explosão social?
- Voltando ao caso de Itália. Nós não temos grandes empresas para competir a nível europeu. Qualquer Governo quer ter essas empresas e tenta fomentar o seu aparecimento. Mas é preciso que os gestores tenham não só qualificação técnica, competência, mas percebam também que o esforço nacional conta com eles e que para isso têm de ter salários mais baixos.
- Era um sinal para o País?
- Era um sinal muito bom e dava muita confiança. Confiança neles e dava mais confiança aos cidadãos para se aproximarem dos partidos e dos votos. Porque os que votam são cada vez menos e a abstenção está sempre a subir.
- Continua a subir. As pessoas estão mais preocupados com outros problemas.
- Com o desemprego e com a sobrevivência. Há um caso dramático com os jovens licenciados que não têm emprego. Não têm emprego, estão pagos a recibo verde e portanto também têm medo. Há muita gente que tem medo de perder o emprego. Por isso, a tal explosão social, se acontecer, é por um grande desespero. Porque hoje há muita gente que não se mexe porque tem medo de perder o emprego.
- É director do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo. Portugal é um alvo do terrorismo?
- Portugal, para os especialistas, não é uma área geográfica de alta probabilidade de risco de atentados. Pode ser muito mais uma área de apoio logístico para esses movimentos. Dinheiro, passaportes, armas.
- E refúgio.
- Sim. Os movimentos de terrorismo e criminalidade organizada já não são como há vinte ou trinta anos. Eram muito nacionais e regionais, como a ETA, o IRA e os movimentos de extrema-esquerda na Itália e Alemanha. Hoje são completamente internacionais. E o que lhes interessa é uma grande cobertura mediática. E surpresa. Portanto, nós, em Portugal, não podemos acreditar na Nossa Senhora de Fátima. E é por isso que os serviços de informação e segurança andam permanentemente em cima desses movimentos. Depois dos atentados de 2001 nos EUA a cooperação entre os países a nível da Comunidade Europeia e a nível mundial, isto é, entre a Europol e a Interpol, é muito maior.
- Portugal não começa a ser um destino apetecível para as máfias?
- Sim. O tráfico de pessoas, o tráfico de droga, em que Portugal é claramente uma área de entrada para a Europa, pode ser o tráfico de armas e a imigração clandestina. Graças a Deus que nós não temos o mesmo tipo de relação com o Norte de África que tem a Espanha, a Itália e a França.
- É um problema complicado de resolver.
- É. A única solução que a Europa tem relativamente a África é conseguir que os africanos, e hoje há muita gente adulta, formada, sem emprego, tenham colocação nos seus países. Mas para isso são precisos investimentos. Só que entre o aumento da demografia e a capacidade de criar empresas e empregos há uma diferença grande. Mas Portugal não é destino dessa imigração. Mas por outro lado temos sido um sítio de passagem.
- E o branqueamento de capitais? Como é a situação em Portugal?
- Não é diferente dos outros países. As medidas que estamos a tomar são idênticas às dos outros países da União Europeia.
- Quais são os planos a curto prazo do Observatório?
- Queremos fazer este ano um relatório sobre a segurança nacional. Autónomo do Governo. E que abranja todas as áreas de segurança. Independentemente dos especialistas que vão fazer o relatório, nós vamos basear-nos numa sondagem que irá ser feita pela Eurosondagem. Para sabermos o que é que as pessoas pensam, por exemplo, da segurança que lhes dão os tribunais. Outra área em que se fala pouco é do ordenamento territorial, que é muito importante para a segurança. Tem havido barbaridades no ordenamento territorial.
- Em Portugal também podem acontecer situações explosivas, como em França, nas áreas metropolitanas?
- As grandes áreas de concentração urbana vão ser os sítios, os locais, das novas guerras. As novas guerras, as novas explosões sociais ou os novos conflitos vão acontecer e já acontecem exactamente nas áreas metropolitanas. Acontecem em Buenos Aires, acontecem em Caracas, acontecem em Bangkok, acontecem em Kinshasa, acontecem em Paris. Isto não tem relação com geografia, com regime político e com a cultura. Só tem uma coisa em comum que é a concentração de pessoas e a dificuldade de inclusão de grupos que vêm de fora. Quer de imigrantes nacionais, quer estrangeiros.
- Quando é que essa sondagem estará pronta?
- Vai haver duas fases. Uma é a sondagem e outra o relatório sobre a segurança nacional. Quanto a datas, teremos os resultados da sondagem talvez em Abril e o relatório ficará pronto no último trimestre do ano.
UM GENERAL PRONTO PARA A "GUERRA"
Garcia Leandro deixou a carreira militar activa há muito pouco tempo. Para trás ficaram 47 anos de serviço público. A maior parte dos quais ao serviço do Exército. Mas este tenente-general de 67 anos está atento ao que se passa em Portugal. Mais do que atento está pronto para participar activamente na reforma do sistema. A conversa com Garcia Leandro aconteceu em sua casa, ali para os lados de Telheiras. Uma casa que espelha uma vida, Timor, Saara Ocidental, Angola, Guiné-Bissau, Macau, Bósnia, NATO e por aí adiante. Em todas as divisões, que Garcia Leandro fez questão de mostrar e explicar ao jornalista, lá estavam quadros, esculturas, homenagens e fotografias da vida de um militar que não acredita nas revoltas feitas por generais ou cardeais. Agora são os políticos que as têm de fazer. Dentro do sistema. E Garcia Leandro garante que a sociedade portuguesa está a mexer, inconformada com uma situação política, económica e social muito perigosa. Reage com indignação aos salários escandalosos num País em que a maioria das pessoas tem medo de ficar sem emprego e ganha ordenados muito baixos. Reage com indignação à corrupção, muita, que anda por aí à solta, à vista desarmada. Alerta para os perigos de uma implosão social. Garante que os partidos vão mudar. A bem ou a mal. E confessa que já foi contactado para entrar em dois novos partidos.
PERFIL
José Eduardo Martinho Garcia Leandro nasceu em Luanda há 67 anos. Casado, com três filhas, fez o Curso de Artilharia da Academia Militar e o Curso Geral do Estado-Maior. Muito novo fez uma primeira comissão em Angola. Seguiu-se outra na Guiné-Bissau. Depois foram uns anos em Timor. Mais tarde foi o primeiro governador de Macau a seguir ao 25 de Abril. Esteve no Saara Ocidental como comandante da componente militar da missão das Nações Unidas para o referendo nessa região africana, foi vice-chefe do Estado-Maior do Exército, director do Instituto de Defesa Nacional, esteve na NATO e hoje é director do Observatório de Segurança e Terrorismo.
António Ribeiro Ferreira
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